Viver a fé nas três Ordens da Criação
(Guilherme Lieven)
Herdamos da Reforma a concepção de Martim Lutero sobre as ordens da organização humana e social. Ele defendeu que Deus está presente e interfere na sua Criação e na organização da vida humana no âmbito da economia, da política e da igreja. Lutero compreendeu que as filhas e filhos de Deus são chamadas para participar da sua missão de transformar, proteger e salvar a vida a partir destas três ordens.
Em sua época Lutero baseou-se num antigo conceito grego das ordens essenciais da sociedade. A economia era definida como a base do sustento da vida humana. Essa era a ordem da casa, da oikos, a base e o espaço da produção de alimentos e bens, desenvolvida por parentes e empregados através do cultivo, da criação de animais e propriedades.
A compreensão de política da época referia-se às organizações humanas públicas desenvolvidas nas pequenas cidades. Era a ordem da polis, de onde veio o conceito política. Por isso política tem a ver com a organização pública e individual das pessoas, realizada para proteger, organizar e garantir convívio humano justo.
Mais tarde, com a formação das comunidades cristãs surgiu a ordem, o espaço e meio de proclamar o evangelho, interpretar a Palavra de Deus, administrar os sacramentos, ensinar, sustentar e articular valores essenciais e absolutos da vida humana e da comunhão das pessoas umas com as outras e com Deus, a Igreja.
O Tema do Ano resgatou essa visão de Martim Lutero sobre a atuação de Deus na história, na sua Criação e na organização humana. A proposta veio para um tempo de crise política, econômica e social. Causou surpresas e interpretações contraditórias. O Tema do Ano tornou-se polêmico. Muitos não compreenderam a sua dimensão teológica, profética e sacerdotal, certamente devido a descontinuação na história dos conceitos Economia, Política e Igreja. Para outros veio ser uma oportunidade para manifestar posicionamentos contrários aos conteúdos de fé da Reforma e de Matim Lutero e a visão de que igreja deve passar ao largo da economia e política. A novidade instalada permitiu, por sua vez, conclusões de que está vivo o posicionamento que defende o afastamento de Deus e da sua igreja da ordem pública, da economia e da organização humana. Tornou público o constrangimento a pessoas que se reúnem em comunidades cristãs para viver a fé em Jesus Cristo e falar, proclamar o Evangelho e a vontade amorosa de Deus. A situação criada revelou traços de uma forma incipiente de defender o silêncio da Igreja de Jesus Cristo na Criação e no mundo.
Apesar das polêmicas, incompreensões e contradições o Tema do Ano cumpre o objetivo de trazer para hoje , para os novos 500 anos, a concepção de Martim Lutero sobre a ação e presença de Deus na realidade humana. Chama as comunidades da IECLB para falar da presença de Deus no mundo, da missão de Deus em relações humanas de produção do sustento e da distribuição justa dos meios de vida, nas relações politicas humanas que devem promover proteção social e convivência justa, E, através da igreja revelar e proclamar a ação salvadora de Deus, sua vontade, que torna real, através do serviço de amor, oração, louvor e compromissos, verdadeiros sinais de graça e da paz, de comunhão e da plenitude da vida, a vida gostosa de viver.
Está colocado o desafio às comunidades, lideranças, ministros e ministras do labor teológico pastoral, catequéti
co, diaconal e missionário na IECLB de apontar para a presença e a missão de Deus no mundo, na realidade humana. A partir da fé escolher o caminho que direciona para a criação da dignidade, de segurança, de convívio justo, de espaços para a vivência da paz, doada pelo Senhor da Igreja Jesus Cristo. Deixo com vocês a paz, a minha paz lhes dou (Jo 14.27a).
Testemunhamos que Jesus Cristo está conosco (Mateus 28.20). A sua paz está presente em nossa vida e na realidade em que vivemos, na economia, na política e na Igreja, dádivas de Deus. Não ainda completa, mas uma paz em pedacinhos, tal como um pão nosso de cada dia, que Cristo dá. O pastor Dietrich Bonhoeffer, preso durante a segunda guerra mundial e assassinado ao final dela, escreveu: “Vocês não têm sua fé de uma vez por todas. Sua fé quer ser conquistada amanhã e depois de amanhã, todo dia de novo.” Também é assim com a paz. Precisamos dar passos em caminhos que nos direcionam todos os dias para a paz e nos colocam em comunhão com Deus e com sua missão no mundo .
Os discípulos, as seguidoras e os seguidores de Jesus tinham muitas dúvidas sobre a ação salvadora de Deus, sobre a comunhão com Ele e sua presença no mundo. Também eles e elas não conheciam a dimensão completa da paz. Naquele tempo, conforme pesquisas especializadas, por exemplo a do P. Dr. Emílio Voigt, em seu livro Contexto e Surgimento do Movimento de Jesus, a população vivia em estado de angústia e insegurança. Não conheciam a paz de Deus. A situação dos agricultores, pescadores, diaristas, escravos, meeiros estavam sob o comando do Império, que regia uma sociedade violenta, hierárquica e tumultuada, onde as pessoas, famílias e tribos viviam ameaçadas, sem garantia de sustento, em meio a doenças e adaptadas à organização humana injusta. Viviam com medo, sem sentido e esperança. Naquele tempo e contexto veio Jesus trazer a salvação e a paz, aquela que conhecemos em pedacinhos, maior do que os nossos entendimento e controle. Jesus veio revelar a presença do Deus Pai e do Espírito Santo na realidade humana, a palavra se traduziu em presença real e humana de Deus na economia, na política e na igreja.
Em nosso tempo a Igreja está chamada para buscar e semear a paz, para participar em comunhão com Deus da sua missão no mundo. Cremos que podemos viver e semear a paz de Deus e falar da sua vontade, da sua justiça e salvação em todas as dimensões humanas e nas três ordens fundamentais do mundo. Precisamos reconhecer que na ausência de Deus, da sua salvação, sem o alimento diário da fé, sem a paz de Cristo, não promovemos e criamos os meios essenciais de vida.
Envoltos pela paz, mesmo sem estar completamente com ela, vivemos em meio as forças da morte, das guerras, dos atos da violência alheia e própria. Graças a Deus isso é possível. Porque Ele está conosco. Nada nos afasta do seu amor (Romanos 8.38). Mesmo pecadores e pecadoras, dependentes de perdão e de transformações diárias podemos romper o silêncio e falar do amor, da salvação e da vontade de Deus, através de ações e envolvimento nas ordens do mundo.
Sempre foi mais fácil apontar ou descrever o que é negativo, ou denunciar os erros. Mas, o momento exige mais reflexões sobre o buraco que estamos cavando para enterrar os outros e a nós mesmos. Estamos ensaiando um velório, sem esperança, sem vida. Em nossas casas não há paz. A família está desestruturada e tornou-se espaço para a violência. As escolas e a educação para todos estão comprometidas, não respondem aos seus desafios. A política não serve, não protege, não organiza. A economia promove a acumulação e não a distribuição e o sustento. Entre outras forças do mal vale lembrar a destruição do meio ambiente, da Criação de Deus, que aumenta o velório e o buraco dos mortos. Está instalada entre nós muita confusão. As igrejas e as comunidades cristãs estão se esvaziando, umas de participantes e outras de legitimidade, porque cada um quer seguir a sua doutrina e ouvir discursos que abonem seus pecados. Dizem não para o evangelho. O apóstolo Paulo, em seu tempo já alertava Timóteo: “Vai chegar o tempo em que as pessoas não vão dar atenção ao verdadeiro ensinamento, mas seguirão os seus próprios desejos. E arranjarão para si mesmas uma porção de mestres, que vão dizer o que elas querem ouvir.” (2 Tm 4.3)
Você e eu, nós podemos nos unir a muitos outros e participar dos sinais da paz de Cristo e da presença de Deus no mundo. Grandes projetos facilitariam esse nosso envolvimento humano regido pela fé. Sem eles e enfraquecidos necessitamos de ajuda e da coragem para fazer novas escolhas.
O povo de Deus no deserto viviam em uma grande crise. Uns queriam voltar para o Egito, outros questionavam o caminho para a nova terra. Entre eles estavam aqueles e aquelas que optaram em substituir Deus. Construíram o bezerro de ouro. Naquele contexto Moisés foi ao encontro de Deus. E trouxe para o povo em conflito e dividido uma proposta simples e eficaz, que interferiu de forma transformadora no contexto do êxodo do povo e no caminho rumo a nova terra. Os mandamentos de Deus foram proclamados.
Sem grandes projetos humanos que garantam o Caminho, a Verdade e a Vida (João 14.6) o Tema do Ano nos remete aos dez mandamentos. Participar da missão de Deus nas três ordens da vida humana, orientados pelos mandamentos, em comunhão e sob a graça renovadora de Deus.
Honrar e temer a Deus. Dar a Deus o que é de Deus. Não usar Deus para justificar nossos erros e nossos sonhos que atravessam a vida dos outros. Santificar a vida com o descanso e, neste dia, proclamar o evangelho, fortalecer a comunhão uns com os outros e com Deus. Respeitar as pessoas que sempre nos cuidaram. Honrar o nosso pai e a nossa mãe, e ser uma mãe ou um pai que cuida da vida. Não furtar. Ser honesto, cultivar a própria dignidade e a do outro. Amar a vida e não matar. Não adulterar as coisas que Deus criou e fez para o bem e a liberdade. Parar de perseguir e odiar as outras pessoas, de elegê-las como inimigas. Cuidar bem de tudo que veio para você das mãos de Deus, e não cobiçar. Os mandamentos de Deus sinalizam o caminho e promovem parcerias com as ações de paz.
O nosso comportamento, somado a pequenos gestos e ações, escolhas e posicionamentos oriundos do evangelho nos colocam em oposição aos que querem silenciar os cristãos e a Igreja de Jesus Cristo. Novamente estamos em um momento histórico em que as pessoas humanas procuram salvar a si mesmas, legitimando propostas econômicas, políticas e de organização social perigosas.
O Tema do Ano nos depara com a presença de Deus nas três ordens da Criação, na economia, na política e na igreja. Desde o batismo somos sacerdotes e sacerdotisas de Deus no mundo, pedras vivas. Nascemos na Criação de Deus, e nela somos resgatados, salvos e transformados em pessoas humanas, preparadas para participar na sagrada missão transformadora de Deus em constante movimento, que escapa do nosso controle e nos alimenta com pequenos pratos do grande banquete que virá (Isaías 25.6-9).
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