29 de novembro de 2013

Estudo sobre Romanos 7.15-25a

Guilherme Lieven

 Introdução
O texto da carta de Paulo aos Romanos 7.15-25ª, previsto para a Prédica no 4º Domingo de Pentecostes exige cuidado exegético e dedicação teológica. A sua mensagem central está relacionada com conteúdos primários da nossa fé. Somos capazes, sem Deus, de encontrar a paz, a liberdade da morte e fazer o bem? Qual a nossa condição humana, existencial, na busca pela comunhão com Deus? Convido você para encontrar inspiração e auxílio, nas referencias exegéticas e meditação apresentadas a seguir, para a abençoada tarefa de proclamar a presença, o amor e a salvação de Deus.
Antes destaco que estão agrupados a esse texto, sugerido para leituras no culto, o texto de Zacarias 9.9-12 e o evangelho de Mateus 11.16-19, 25-30. Zacarias anuncia a chegada de um Rei justo, mesmo pobre e miserável, mesmo sem aparência de rei será aquele que destruirá o mal, anunciará a paz e restituirá a vida. O texto do evangelho de Mateus apresenta as dificuldades do povo da época e de suas lideranças compreenderem a presença de Deus no mundo, através do seu Filho. Racionalmente ninguém conseguia entender que o Filho do Homem, que come e bebe, amigo de pecadores e pecadoras, pudesse ser mais poderoso do que os profetas e João. O ser humano não aceita esse rei sem os poderes de rei, esse Filho do Homem sem a aparência de Deus para livrar-lo do mal e conceder-lhe a liberdade da morte.
Essas dificuldades permanecem também no nosso tempo, transitam nas mentes de pessoas ligadas ou não às comunidades cristãs.

Comentários exegéticos
A carta aos romanos: Paulo escreveu a carta em Corinto, por volta do ano 56, antes de se dirigir a Roma e a Judéia. Nela sistematizou sua teologia, desenvolvida em suas viagens missionárias no oriente do Império Romano, onde se deparou com controvérsias, conflitos e ameaças ao evangelho de Jesus Cristo. Certamente elaborou as suas convicções pensando na sua visita à Comunidade em Roma, preparando-se para eventuais debates e oposição. Talvez esses sejam os estímulos que o apóstolo recebeu para obter uma elaboração teológica notável.
O texto, 7.15-25ª: Ele está inserido no bloco (3.21 a 8.39) em que Paulo argumenta positivamente sobre as conseqüências do pecado humano e a ação de Deus.

Paulo comunica que a morte do ser humano é vencida por Cristo, graças à vontade absoluta de Deus (V. 25a). A questão teológica, no entanto, é apresentada nos versículos anteriores. Faço o mal que não quero, e deixo de fazer o bem que tanto quero e almejo (V. 15). Paulo define teologicamente a pessoa humana como um ser frágil, dependente, que não consegue fazer o que quer. Reitera essa posição (V. 16) já definida no inicio do capítulo 7, quando reafirma a lei como o instrumento bom, que denuncia ao ser humano o seu erro, o seu desvio do bem. A lei torna-se a referência para o discernimento entre o bem e o mal. Conforme o V. 21 a lei denuncia uma força do mal que habita no ser humano e o impede de fazer o bem. Mas, essa lei, não resolve o conflito, antes ela evidencia a contradição. Ao mesmo tempo, Paulo afirma que há no ser humano uma vontade de fazer o bem, mas que sozinho não consegue fazê-lo (V. 18). Ele sentencia que há um conflito interno, forças em oposição, que anulam o livre arbítrio do ser humano. Os versículos 22 a 24 reforçam a definição da situação desgraçada do ser humano, que o torna dependente de uma ação externa de Deus para salvá-lo desse conflito, da morte, e prepará-lo para fazer o bem.
O Contexto maior e a teologia de Paulo: As definições e posicionamento do apóstolo contidos no texto 7.15-25a exigem referencias ao contexto maior, e assim, ampliar a nossa aproximação às intenções e pressupostos teológicos de Paulo expressos na carta. Comprometeríamos a mensagem se deslocássemos esse texto do bloco maior da carta que apresenta a teologia da justificação pela fé e a ação salvadora de Deus em Jesus Cristo.
Por exemplo, nesse bloco, Paulo se refere a teologia do pecado original (Rm 5.14-19) para explicar a necessidade humana da ação salvadora de Deus em Jesus Cristo, conforme nosso texto (v. 25a), aquele que livra o ser humano da escravidão do pecado e da morte. O embate entre a vontade de fazer o bem e a escravidão de sempre fazer o mal que não se quer pressupõe o conceito sobre o ser humano definido pela teologia do Pecado Original. Ou seja, o ser humano nasce escravo do pecado, com a propensão para fazer o mal, com uma dificuldade para fazer o bem, mesmo que tenha a vontade de fazer o bem.
A solução anunciada pelo apóstolo (V. 25a) exige, ainda, ampliar a compreensão e a dimensão da justiça de Deus, da salvação doada por Deus em Jesus Cristo. Consideramos que a ação salvadora de Cristo restaura o ser humano como criatura de Deus. Liberta do poder do mal (Na oração do Pai Nosso; Livra-nos do mal) e restitui ao ser humano a liberdade. Aqui podemos nos referir ao “nascer de novo”, “nova criatura”, “novo ser humano”, um ser humano reconciliado e em comunhão com Deus, a partir da ação salvífica do próprio Deus, realizada em Jesus Cristo.
Estendendo a reflexão, mesmo sem a autorização direta do nosso texto específico, Romanos 7.15-25a, precisamos retomar, por fim, a compreensão de que a ação salvadora de Cristo não nos retira da condição humana nesse mundo. Ela restitui a nossa dignidade como criatura humana e nos concede a filiação plena com Deus, antecipa a nossa liberdade diante dos poderes da morte e nos livra da morte final. Significa que a luta interna permanece, agora, porém, em comunhão e reconciliados com Deus. A partir dessa novidade de vida somos chamados para viver em comunhão com Deus em nossos contextos, na realidade de cruz. Permanece também a importância da lei para continuar denunciando e identificando o rosto do mal, presente em nós e na face da terra.
Com isso, estamos nos referindo à teologia da simultaneidade da presença da justiça de Deus no ser humano, mesmo sendo pecador, vítima do pecado original, portanto, atacado pelo mal. A justiça de Deus cria no ser humano a consciência do pecado e da sua verdadeira realidade humana. Ao mesmo tempo, concede o perdão, o livra constantemente do mal. Essa ação salvadora inaugurada em Cristo é uma dádiva incondicional, instalada, por graça, no ser humano. Essa ação do amor e misericórdia de Deus denuncia no ser humano o seu desamor, sua escravidão e, ao mesmo tempo, antecipa a sua participação na ressurreição de Cristo.
Essa simultaneidade libertadora, que conjuga a iniciativa do ser humano sob a condução de Deus. Impede o pensamento de processo e progressão moral do ser humano. Desautoriza a idéia de que exista entre os cristãos uns mais santificados do que os outros. O amor incondicional não permite a hierarquia de santidade. Cremos que se trata de um constante matar e ressuscitar, uma ação salvadora viva, conduzida por Deus.

Meditação:
Onde está a salvação? E como ela acontece? Essas são as perguntas de todos os dias, não de todos, mas para um segmento da humanidade. Esse ser humano percebe a sua fragilidade, o seu vazio e, comumente, busca socorro. Almeja a paz e a liberdade, busca por sentido e felicidade, não raro confundindo-a com prazer, poder, benefícios e interesses individuais passageiros. Nessa busca é comum fazer várias tentativas e considerar todas as propostas humanas e religiosas, subjetivas e objetivas como possíveis para atingir a meta de se livrar do mal e de seus poderes.
Nessa busca, outro segmente expressivo de pessoas deixam se seduzir pelas múltiplas ofertas, luzes, movimento, diversidade, cores e oportunidades, tornando-se vítimas de um sofisticado mercado. Geralmente pagam caro ao relativizar seus valores e seus amores, submetendo-se ao processo de alienação da dignidade e do direito humano, distanciando-se cada vez mais da paz e da liberdade.
Identificamos também aqueles e aquelas que já se convenceram dos limites dos poderes da ciência, tecnologia e automação. Descobriram que, mesmo tendo acesso ou controle de todo esse aparato, ainda não encontraram a paz e a libertação dos tormentos e conflitos interiores e externos.
Não podemos ignorar, ainda, que impera em nosso tempo um sutil culto ao ser humano. A sociedade pós-moderna alimenta uma estrutura deslumbrante para sustentar o ser humano na condição do INÍCIO O MEIO E O FIM, centro da Criação, aquele que pode usufruir de tudo, de todos, da história e salvar-se a si mesmo.
Assistimos a desconstrução de princípios, conceitos e sistemas. Colhemos um tempo de barbárie, de pouca solidariedade e pouco comprometimento com o coletivo e com a vida em comunidade. Instalou-se a indiferença diante das desigualdades, injustiças, poderes e meios de morte. Transita a alta competitividade e a lógica da acumulação de bens e das aparências. Importa muito, para dar sentido à vida, o ser reconhecido, ser admirado, ter prazer e acesso a uma infinidade de produtos e serviços voltados para si mesmo. Um tempo em que as pessoas passam umas por cima das outras, sem qualquer constrangimento ou culpa. Para que serve a oferta e a ação salvífica de Deus se eu posso buscar e escolher aqui mesmo as “coisas” que me dão sentido para a vida e me salvam? Como Deus pode me salvar se não sou escravo de nada?
Sabemos, no entanto, que aquilo que estava ruim ficou pior. Ganhamos o declínio da eficácia do serviço público, o desvirtuamento da política, a crise ecológica, o aumento do fundamentalismo, a epidemia das doenças psíquicas, a fragmentação de pequenos e grandes sistemas de verdadeira ajuda e formação do ser humano. Ganhamos uma geração voltada para si mesma, presa ao presente e alienada da perspectiva de horizontes e da continuidade da história. Com ela perdemos os grandes ideais, a esperança. Para essa geração a salvação está aí: A minha beleza e independência, o meu prazer, tudo posso hoje mesmo e com crédito tudo posso ter. Ganhamos o culto à jactância. Os dons e carismas, adulterados, receberam nova função. Sem exageros podemos aferir que a crise humana se acirrou. Com a linguagem teológica de Paulo podemos dizer que a força do mal está ganhando a batalha, mesmo que o ser humano aspire ao bem.
A mensagem do nosso texto, Rm 7.15-25ª e a teologia de Paulo estão vivas. No contexto que identificamos acima é notícia nova e boa, mesmo não sendo aceita. O ser humano necessita da vitória de Deus sobre a morte e a escravidão do pecado.  
A novidade do nosso texto está na mensagem de que a salvação vem de fora, de Deus. O Deus que em Jesus Cristo veio para essa realidade e para o ser humano vazios de salvação, assumiu as conseqüências do seu amor e instalou nela uma nova dimensão da vida, a vida maior do que o mal, que pode ser edificada nessa história através de sinais. O Deus rei, salvador, apresentado no livro de Zacarias e no Evangelho de Mateus despido dos ideais humanos de poder. Essa é a ação reconciliadora de Deus, que em paradoxo ao estabelecido cria no ser humano a comunhão santificadora, mudando os seus planos e tornando-o mais forte do que o mal, um ser humano que não se conforma com a injustiça, a desigualdade, a brutalidade, a intolerância, a destruição da Criação e da vida no mundo, um ser humano que incide na realidade disposto a servir e amar com liberdade, perseverança, esperança, com o espírito bom, dádiva, força do Espírito Santo, vocação da presença salvadora de Jesus cristo.

Ajuda para a prédica:
Não é possível pregar sobre esse texto se não confessamos a teologia do pecado original e a fé na superação da força do mal por meio da ação salvadora de Jesus Cristo. A mensagem do nosso texto exige reconhecer em Deus o poder de guiar o ser humano para a liberdade e à vida justa, criativa e criadora.
Esse texto e a teologia de Paulo não autorizam uma pregação que sustente a idéia de que há pessoas mais santas do que outras, ou que nosso objetivo é formar comunidades só de justos, convertidos e limpos de pecado. O Texto, ao contrário, apresenta o desafio de proclamar a mensagem de salvação nas situações em que a morte e o pecado estão presentes.
Sugiro inspirar-se pela imagem da dinâmica do diálogo. O Deus que dialoga constantemente com a realidade e com o ser humano. O Deus que instalou no mundo a proposta comunitária da fé, a criação de comunidades que reúne pessoas humanas pecadoras, simultaneamente santificadas pela sua ação salvadora, prontas para interagir com a sua realidade de cruz e morte, revestidas dos poderes do bem, que desperta o ser humano para interagir com sinais da verdadeira e duradoura novidade de vida já presentes no mundo.
No bojo da mensagem pode-se, ainda, referir-se a um exemplo de simultaneidade da presença do bem e do mal, por exemplo o trânsito em medias e grandes cidades. O trânsito, polui e mata, devido ao pecado do ser humano que, mesmo sabendo das regras do trânsito, insiste em não observá-las. Mas, esse mesmo trânsito salva vidas ao viabilizar o transporte, o socorro de vítimas e a locomoção das pessoas com segurança e organização.
Outras situações humanas hospedam a simultaneidade da presença do mal e da ação salvadora de Deus em Jesus Cristo. Referir-se a elas facilita a formulação de respostas para as perguntas que queremos responder: Onde está a salvação? Como ela transforma as pessoas humanas e incide na realidade, no quotidiano. Por que a jactância, o consumismo e o hedonismo estão em contradição à comunhão com a presença salvadora de Jesus Cristo em nós e em nossa realidade?

Tomar consciência da nossa condição pecadora, da nossa incapacidade de salvar a nós mesmos, nos aproxima da ação salvadora de Jesus cristo e cria comunhão com Deus. O nosso protagonismo pessoal, comunitário e no contexto em que vivemos passa a ser mediado pela ação salvadora de Jesus Cristo.

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