Guilherme Lieven
O texto da carta de Paulo aos
Romanos 7.15-25ª, previsto para a Prédica no 4º Domingo de Pentecostes exige
cuidado exegético e dedicação teológica. A sua mensagem central está
relacionada com conteúdos primários da nossa fé. Somos capazes, sem Deus, de
encontrar a paz, a liberdade da morte e fazer o bem? Qual a nossa condição
humana, existencial, na busca pela comunhão com Deus? Convido você para
encontrar inspiração e auxílio, nas referencias exegéticas e meditação
apresentadas a seguir, para a abençoada tarefa de proclamar a presença, o amor
e a salvação de Deus.
Antes destaco que estão agrupados a
esse texto, sugerido para leituras no culto, o texto de Zacarias 9.9-12 e o
evangelho de Mateus 11.16-19, 25-30. Zacarias anuncia a chegada de um Rei
justo, mesmo pobre e miserável, mesmo sem aparência de rei será aquele que destruirá
o mal, anunciará a paz e restituirá a vida. O texto do evangelho de Mateus
apresenta as dificuldades do povo da época e de suas lideranças compreenderem a
presença de Deus no mundo, através do seu Filho. Racionalmente ninguém
conseguia entender que o Filho do Homem, que come e bebe, amigo de pecadores e
pecadoras, pudesse ser mais poderoso do que os profetas e João. O ser humano não
aceita esse rei sem os poderes de rei, esse Filho do Homem sem a aparência de
Deus para livrar-lo do mal e conceder-lhe a liberdade da morte.
Essas dificuldades permanecem também
no nosso tempo, transitam nas mentes de pessoas ligadas ou não às comunidades
cristãs.
Comentários
exegéticos
A
carta aos romanos: Paulo
escreveu a carta em Corinto, por volta do ano 56, antes de se dirigir a Roma e
a Judéia. Nela sistematizou sua teologia, desenvolvida em suas viagens
missionárias no oriente do Império Romano, onde se deparou com controvérsias,
conflitos e ameaças ao evangelho de Jesus Cristo. Certamente elaborou as suas
convicções pensando na sua visita à Comunidade em Roma, preparando-se para
eventuais debates e oposição. Talvez esses sejam os estímulos que o apóstolo
recebeu para obter uma elaboração teológica notável.
O
texto, 7.15-25ª: Ele
está inserido no bloco (3.21 a 8.39) em que Paulo argumenta positivamente sobre
as conseqüências do pecado humano e a ação de Deus.
Paulo comunica que a morte do ser
humano é vencida por Cristo, graças à vontade absoluta de Deus (V. 25a). A
questão teológica, no entanto, é apresentada nos versículos anteriores. Faço o mal que não quero, e deixo de fazer o
bem que tanto quero e almejo (V. 15). Paulo define teologicamente a pessoa
humana como um ser frágil, dependente, que não consegue fazer o que quer. Reitera
essa posição (V. 16) já definida no inicio do capítulo 7, quando reafirma a lei
como o instrumento bom, que denuncia ao ser humano o seu erro, o seu desvio do
bem. A lei torna-se a referência para o discernimento entre o bem e o mal. Conforme
o V. 21 a lei denuncia uma força do mal que habita no ser humano e o impede de
fazer o bem. Mas, essa lei, não resolve o conflito, antes ela evidencia a
contradição. Ao mesmo tempo, Paulo afirma que há no ser humano uma vontade de
fazer o bem, mas que sozinho não consegue fazê-lo (V. 18). Ele sentencia que há
um conflito interno, forças em oposição, que anulam o livre arbítrio do ser
humano. Os versículos 22 a 24 reforçam a definição da situação desgraçada do
ser humano, que o torna dependente de uma ação externa de Deus para salvá-lo
desse conflito, da morte, e prepará-lo para fazer o bem.
O
Contexto maior e a teologia de Paulo:
As definições e posicionamento do apóstolo contidos no texto 7.15-25a exigem
referencias ao contexto maior, e assim, ampliar a nossa aproximação às
intenções e pressupostos teológicos de Paulo expressos na carta. Comprometeríamos
a mensagem se deslocássemos esse texto do bloco maior da carta que apresenta a
teologia da justificação pela fé e a ação salvadora de Deus em Jesus Cristo.
Por exemplo, nesse bloco, Paulo se
refere a teologia do pecado original (Rm 5.14-19) para explicar a necessidade
humana da ação salvadora de Deus em Jesus Cristo, conforme nosso texto (v.
25a), aquele que livra o ser humano da escravidão do pecado e da morte. O embate
entre a vontade de fazer o bem e a escravidão de sempre fazer o mal que não se
quer pressupõe o conceito sobre o ser humano definido pela teologia do Pecado
Original. Ou seja, o ser humano nasce escravo do pecado, com a propensão para fazer
o mal, com uma dificuldade para fazer o bem, mesmo que tenha a vontade de fazer
o bem.
A solução anunciada pelo apóstolo
(V. 25a) exige, ainda, ampliar a compreensão e a dimensão da justiça de Deus,
da salvação doada por Deus em Jesus Cristo. Consideramos que a ação salvadora
de Cristo restaura o ser humano como criatura de Deus. Liberta do poder do mal
(Na oração do Pai Nosso; Livra-nos do mal) e restitui ao ser humano a
liberdade. Aqui podemos nos referir ao “nascer de novo”, “nova criatura”, “novo
ser humano”, um ser humano reconciliado e em comunhão com Deus, a partir da
ação salvífica do próprio Deus, realizada em Jesus Cristo.
Estendendo a reflexão, mesmo sem a
autorização direta do nosso texto específico, Romanos 7.15-25a, precisamos
retomar, por fim, a compreensão de que a ação salvadora de Cristo não nos
retira da condição humana nesse mundo. Ela restitui a nossa dignidade como
criatura humana e nos concede a filiação plena com Deus, antecipa a nossa
liberdade diante dos poderes da morte e nos livra da morte final. Significa que
a luta interna permanece, agora, porém, em comunhão e reconciliados com Deus. A
partir dessa novidade de vida somos chamados para viver em comunhão com Deus em
nossos contextos, na realidade de cruz. Permanece também a importância da lei
para continuar denunciando e identificando o rosto do mal, presente em nós e na
face da terra.
Com isso, estamos nos referindo à
teologia da simultaneidade da presença da justiça de Deus no ser humano, mesmo
sendo pecador, vítima do pecado original, portanto, atacado pelo mal. A justiça
de Deus cria no ser humano a consciência do pecado e da sua verdadeira
realidade humana. Ao mesmo tempo, concede o perdão, o livra constantemente do
mal. Essa ação salvadora inaugurada em Cristo é uma dádiva incondicional,
instalada, por graça, no ser humano. Essa ação do amor e misericórdia de Deus
denuncia no ser humano o seu desamor, sua escravidão e, ao mesmo tempo,
antecipa a sua participação na ressurreição de Cristo.
Essa simultaneidade libertadora, que
conjuga a iniciativa do ser humano sob a condução de Deus. Impede o pensamento
de processo e progressão moral do ser humano. Desautoriza a idéia de que exista
entre os cristãos uns mais santificados do que os outros. O amor incondicional
não permite a hierarquia de santidade. Cremos que se trata de um constante
matar e ressuscitar, uma ação salvadora viva, conduzida por Deus.
Meditação:
Onde está a salvação? E como ela
acontece? Essas são as perguntas de todos os dias, não de todos, mas para um
segmento da humanidade. Esse ser humano percebe a sua fragilidade, o seu vazio
e, comumente, busca socorro. Almeja a paz e a liberdade, busca por sentido e
felicidade, não raro confundindo-a com prazer, poder, benefícios e interesses
individuais passageiros. Nessa busca é comum fazer várias tentativas e
considerar todas as propostas humanas e religiosas, subjetivas e objetivas como
possíveis para atingir a meta de se livrar do mal e de seus poderes.
Nessa busca, outro segmente
expressivo de pessoas deixam se seduzir pelas múltiplas ofertas, luzes,
movimento, diversidade, cores e oportunidades, tornando-se vítimas de um
sofisticado mercado. Geralmente pagam caro ao relativizar seus valores e seus
amores, submetendo-se ao processo de alienação da dignidade e do direito humano,
distanciando-se cada vez mais da paz e da liberdade.
Identificamos também aqueles e
aquelas que já se convenceram dos limites dos poderes da ciência, tecnologia e automação.
Descobriram que, mesmo tendo acesso
ou controle de todo esse aparato, ainda não encontraram a paz e a libertação
dos tormentos e conflitos interiores e externos.
Não podemos ignorar, ainda, que impera
em nosso tempo um sutil culto ao ser humano. A sociedade pós-moderna alimenta
uma estrutura deslumbrante para sustentar o ser humano na condição do INÍCIO O
MEIO E O FIM, centro da Criação, aquele que pode usufruir de tudo, de todos, da
história e salvar-se a si mesmo.
Assistimos a desconstrução de princípios, conceitos e sistemas.
Colhemos um tempo de barbárie, de pouca solidariedade e pouco comprometimento
com o coletivo e com a vida em comunidade. Instalou-se a indiferença diante das
desigualdades, injustiças, poderes e meios de morte. Transita a alta competitividade e a lógica da
acumulação de bens e das aparências. Importa muito, para dar sentido à vida, o
ser reconhecido, ser admirado, ter prazer e acesso a uma infinidade de produtos
e serviços voltados para si mesmo. Um tempo em que as pessoas passam umas por
cima das outras, sem qualquer constrangimento ou culpa. Para que serve a oferta
e a ação salvífica de Deus se eu posso buscar e escolher aqui mesmo as “coisas”
que me dão sentido para a vida e me salvam? Como Deus pode me salvar se não sou
escravo de nada?
Sabemos, no entanto, que aquilo que
estava ruim ficou pior. Ganhamos o declínio da eficácia do serviço público, o
desvirtuamento da política, a crise ecológica, o aumento do fundamentalismo, a
epidemia das doenças psíquicas, a fragmentação de pequenos e grandes sistemas
de verdadeira ajuda e formação do ser humano. Ganhamos uma geração voltada para
si mesma, presa ao presente e alienada da perspectiva de horizontes e da
continuidade da história. Com ela perdemos os grandes ideais, a esperança. Para
essa geração a salvação está aí: A minha beleza e independência, o meu prazer,
tudo posso hoje mesmo e com crédito tudo posso ter. Ganhamos o culto à
jactância. Os dons e carismas, adulterados, receberam nova função. Sem exageros
podemos aferir que a crise humana se acirrou. Com a linguagem teológica de
Paulo podemos dizer que a força do mal está ganhando a batalha, mesmo que o ser
humano aspire ao bem.
A mensagem
do nosso texto, Rm 7.15-25ª e a teologia de Paulo estão vivas. No contexto que
identificamos acima é notícia nova e boa, mesmo não sendo aceita. O ser humano
necessita da vitória de Deus sobre a morte e a escravidão do pecado.
A novidade do nosso texto está na
mensagem de que a salvação vem de fora, de Deus. O Deus que em Jesus Cristo
veio para essa realidade e para o ser humano vazios de salvação, assumiu as
conseqüências do seu amor e instalou nela uma nova dimensão da vida, a vida
maior do que o mal, que pode ser edificada nessa história através de sinais. O
Deus rei, salvador, apresentado no livro de Zacarias e no Evangelho de Mateus
despido dos ideais humanos de poder. Essa é a ação reconciliadora de Deus, que em
paradoxo ao estabelecido cria no ser humano a comunhão santificadora, mudando
os seus planos e tornando-o mais forte do que o mal, um ser humano que não se
conforma com a injustiça, a desigualdade, a brutalidade, a intolerância, a
destruição da Criação e da vida no mundo, um ser humano que incide na realidade
disposto a servir e amar com liberdade, perseverança, esperança, com o espírito
bom, dádiva, força do Espírito Santo, vocação da presença salvadora de Jesus
cristo.
Ajuda
para a prédica:
Não é possível pregar sobre esse
texto se não confessamos a teologia do pecado original e a fé na superação da
força do mal por meio da ação salvadora de Jesus Cristo. A mensagem do nosso
texto exige reconhecer em Deus o poder de guiar o ser humano para a liberdade e
à vida justa, criativa e criadora.
Esse texto e a teologia de Paulo não
autorizam uma pregação que sustente a idéia de que há pessoas mais santas do
que outras, ou que nosso objetivo é formar comunidades só de justos,
convertidos e limpos de pecado. O Texto, ao contrário, apresenta o desafio de
proclamar a mensagem de salvação nas situações em que a morte e o pecado estão
presentes.
Sugiro inspirar-se pela imagem da
dinâmica do diálogo. O Deus que dialoga constantemente com a realidade e com o
ser humano. O Deus que instalou no mundo a proposta comunitária da fé, a criação
de comunidades que reúne pessoas humanas pecadoras, simultaneamente santificadas
pela sua ação salvadora, prontas para interagir com a sua realidade de cruz e
morte, revestidas dos poderes do bem, que desperta o ser humano para interagir
com sinais da verdadeira e duradoura novidade de vida já presentes no mundo.
No bojo da mensagem pode-se, ainda, referir-se
a um exemplo de simultaneidade da presença do bem e do mal, por exemplo o
trânsito em medias e grandes cidades. O trânsito, polui e mata, devido ao
pecado do ser humano que, mesmo sabendo das regras do trânsito, insiste em não
observá-las. Mas, esse mesmo trânsito salva vidas ao viabilizar o transporte, o
socorro de vítimas e a locomoção das pessoas com segurança e organização.
Outras situações humanas hospedam a
simultaneidade da presença do mal e da ação salvadora de Deus em Jesus Cristo.
Referir-se a elas facilita a formulação de respostas para as perguntas que
queremos responder: Onde está a salvação? Como ela transforma as pessoas
humanas e incide na realidade, no quotidiano. Por que a jactância, o consumismo
e o hedonismo estão em contradição à comunhão com a presença salvadora de Jesus
Cristo em nós e em nossa realidade?
Tomar
consciência da nossa condição pecadora, da nossa incapacidade de salvar a nós
mesmos, nos aproxima da ação salvadora de Jesus cristo e cria comunhão com Deus.
O nosso protagonismo pessoal, comunitário e no contexto em que vivemos passa a
ser mediado pela ação salvadora de Jesus Cristo.
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